O MEL DO ROCK

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segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

LOUD REED E METALLICA SE UNEM PARA DESPERTAR FÚRIA ADORMECIDA


Por: Pedro Alexandre Sanches

Começo este texto com uma frase burra: eu não gosto de heavy metal. Por não gostar, jamais me imaginei escrevendo sobre um disco ou uma banda pertencente a essa vertente do rock. Jamais me imaginei tecendo considerações sobre o heavy metal, mas eis-me aqui, debruçado sobre um disco do Metallica.

Tento explicar por que acho burra a primeira frase que escrevi: me parece burro não gostar de algo em bloco. Soa mais ou menos como "não gosto da cor azul", ou "não gosto de gatos", ou "não gosto de jazz". Como diz um companheiro que escreve sobre música realmente popular brasileira, existe tecnobrega bom e tecnobrega ruim, sertanejo bom e sertanejo ruim, axé bom e axé ruim. Concordo, e suponho que aconteça o mesmo com o heavy metal. Meus ouvidos é que não são treinados para distinguir.
Kirk Hammett, à esquerda de James Hetfield, adiantou aos fãs mais tradicionais que novo trabalho não seria um album 100%Metallica

Mas se não sei avaliar, raios, por que estou aqui tentando escrever sobre o Metallica?! Porque, diachos, o Metallica resolveu compor, tocar, cantar e gravar um disco em parceria com um de meus ídolos, Lou Reed. "Lulu" é o nome do disco, metaleiro a valer.

Imagino que, provavelmente, quem gosta de Metallica também não deva ir muito com a cara de Lou Reed, o líder da banda cult sessentista Velvet Underground, o discípulo do papa da pop art Andy Warhol, o autor do clássico álbum de 1972 Transformer (sobre traficantes, prostitutas, prostitutos e travestis), o artífice do art rock cantado-falado, palavroso, verborrágico, labiríntico. 

São dois mundos contíguos (tudo aqui é rock), mas que dificilmente convergiram historicamente para um mesmo ponto. "Lulu" é esse ponto de convergência, para a perplexidade de muitos (eu incluído) em ambos os lados do front.

Lulu merece despertar mais polêmica e discussão do que a surpresa de uma parceria tão inesperada 

O disco desafia mais tabus além desse de juntar art rock e heavy metal num mesmo pandemônio. Lulu é uma personagem jovem, feminina, que Lou Reed canta em primeira pessoa. Assim, ele, que sempre fez da ambiguidade sexual um de seus nichos, conduz uma banda de machões abrutalhados a penetrar num universo que afirma coisas como "eu sou apenas uma garota do interior" (em "Brandenburg Gate"), "eu tenho o amor de muitos homens/ mas não amo nenhum deles" (em "Cheat on Me", única melodia minimamente delicada do CD duplo), ou "eu vou chupar seu cortador mais afiado/ como se fosse o pau de um homem de cor" (em "Pumping Blood", assim mesmo, acoplando a arriscada expressão em desuso "colored man").

Descontado o eu-lírico feminino, trata-se de um imaginário bem próximo às texturas soturnas do rock pauleira, de imaginário francamente sadomasoquista, em referências a couro, sangue coagulado, suicídio, "fist fucking" etc. A tipologia S&M alinha os metaleiros do Metallica ao Lou Reed de Berlin (1973), um álbum todo costurado em suicídios, assassinatos, roubos de crianças, súplicas e humilhações. Mas, se em Berlin Lou Reed oscilava entre o sádico e o masoqusita, aqui, na figura de Lulu, ele até diz "eu sou o agressor", mas via de regra assume mais a perspectiva do violado que a do violador. Não tenho certeza, mas acredito que não seja um hábito frequente às primeiras pessoas do heavy metal.

Originalmente, Reed compôs músicas de Lulu para uma peça de teatro

"Eu queria que você me amarrasse e me batesse", "imploro que você me humilhe", "sou sua garotinha/ por favor, cuspa na minha boca" e "você é meu Golias", diz Lulu em "Mistress Dread". "Você é mais homem que eu/ para morrer e não ter sentimentos/ para estar seco e sem esperma como uma garota/ eu quero tanto machucar você/ case comigo/ quero você como minha esposa", tece enigmas em "Frustration". "Os pelos em suas costas/ o cheiro de suas axilas/ o sabor de sua vulva e tudo dentro dela/ nós todos realmente amamos você", um eu-lírico na primeira pessoa do plural aumenta a confusão em "Dragon", talvez saindo pela primeira vez da persona de Lulu. 

"Prenda-me/ seja meu senhor e salvador/ prenda-me pelos cabelos", Lulu volta ao papel masoquista na última canção, "Junior Dad", antes de expelir as perturbadoras palavras finais do disco: "A maior decepção/ a idade fez ele definhar até um papai júnior". 

"Eu quero ver o seu suicídio", "eu quero você no chão/ sua alma sacudindo num caixão", diz Lulu em "The View". O heavy metal diria isso, não diria? Lou Reed diria isso, não diria? Uma mulher estuprada por um roqueiro bêbado diria isso, não diria? Uma transformer violentada por um machão enlouquecido diria isso, não diria?

Pois Lulu condensa em si todos esses personagens e todas essas circunstâncias. Produz-se aí um encontro possivelmente inédito. Lulu, a primeira pessoa da trombada Reed-Metallica, é um terceiro ente, um pouco Metallica, um pouco Velvet Underground; um pouco heavy metal subserviente à indústria fonográfica precisando de legitimidade; um pouco art rock sem público precisando de lucro e apelo comercial.

Este é, afinal, o conteúdo central de "Lulu". Um esteta de 69 anos, de voz envelhecida, encontra uma banda de rock conservadora hipermasculinizada que já se colocou até a favor das gravadoras decadentes na repressão contra seus próprios fãs moleques pirateiros. Vários mundos que nunca se encontravam se veem de repente na necessidade de dialogar, que seja pelos 15 minutos de fama de que falava Warhol. Entretenimento & arte. Sutileza & selvageria. Truculência & poesia. Feminino & masculino. Machismo & feminismo. Heterossexual, homossexual, bissexual etc. Homofobia, misoginia, racismo. Opressores & oprimidos, misturados & confundidos nos mesmos personagens.


 "Lulu" é um disco escroto, violento, cruel, uma carnificina. Mas é protagonizado mais pelos condenados à forca que por seus carrascos. Em mais de um momento, Lulu nos perturba vociferando que o agredido é o agressor, e que esse espelho precisa ser vasculhado (inclusive em relação aos Estados Unidos, terra natal dos artistas que a conceberam). 

No mais, não tem a menor importância o fato de eu gostar ou não de heavy metal. Não é o meu gosto (nem o seu) que está em jogo.

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